Requerimento (Adriana Falcão)
Caro Senhor Tempo,
Espero que esta o encontre
passando bem, ou melhor, passando o mais devagar possível.
Por aqui vai-se indo, como o
Senhor quer e consente, meio rápido demais para o meu gosto, e quando vi...
Foi-se mais um ano.
E com ele foram-se uma
quantidade incalculável de amores, cores, idades, alguns amigos, não sei
quantos neurônios, memórias, remorsos, desvarios, cabelos, ilusões, alegrias,
tristezas, várias certezas (se não me engano, treze), algumas verdades indiscutíveis,
umas calças que não fecham mais e aquele vestido de que eu gostava tanto.
Foi-se o meu gosto por
vitrine.
Foi-se quase todo o meu vidro
de perfume.
Foi-se meu costume de
imaginar asneiras à noite.
Foi-se meu forte instinto de
acreditar no que me dizem.
Foi-se meu açucareiro de
porcelana.
Que pena.
Foi-se o tempo em que uma
simples farra não significava necessariamente uma condenação sumária no dia
subseqüente.
Foi-se a poupança.
O troquinho da gaveta.
Foi-se aquele antigo projeto.
Foram-se exatamente nove
vírgulas seis por cento de todas as minhas esperanças.
Será que o Senhor não se
cansa, seu Tempo?
Não pensa em tirar umas
férias, dar uma pausa, respirar um pouco?
Não lhe agrada a idéia de
mudar o andamento? Diminuir o ritmo? Em vez de tic-tac, inventar uma palavra
mais comprida para compasso, mantra, ícone, diagrama?
Me diga sinceramente: para
que tanta pressa?
Anda difícil acompanhar seus
passos ultimamente.
Não precisa dar meia-volta,
eu não espero tanto. Eternidade? Não. Só queria sua amizade.
Foi-se mais um ano.
E o Senhor passou voando,
rebocou os meus momentos, foi desbotando minhas lembranças, levando cada
instante meu de carona.
Tentei voltar atrás em
algumas decisões. Já era tarde.
Não deixei nada para amanhã.
Mesmo assim não fiz sequer metade do que pretendia.
Imaginei várias maneiras de
estancar os dias, segunda, terça, quarta, quando via já era quinta. Sexta.
Sábado. Domingo. Pronto.
Pensei em fuga. Será que
existe algum lugar deste mundo onde as horas não me encontrem? Fiquei meses trancada
em casa.
Foi inútil. Lá fora, o Senhor
continua passando.
E já passou mais um
pouquinho.
Calma, Tempo!
Espere só um minutinho para
eu explicar melhor meu ponto de vista.
Nem todo mundo é pedra,
concorda? Dito isso, imagine então quantos pobres mortais sofrem da mesma
agonia diária: giros e mais giros nos ponteiros, os cantos dos cucos, as
denúncias das sombras, os grãos de areia escorrendo (parece até hemorragia
crônica), tudo escapulindo, descendo, subindo, o frenesi dos dígitos, um, dois,
três, quatro, cinco, cem, o Senhor vai tirar o pai da forca?
Está fugindo de alguém? De
quem? De mim? De ontem?
Eu conheço de cor suas
obrigações.
Estou convencida de suas
utilidades.
Não fosse o Senhor, não
existiriam saudade, retrato, suvenir, antiguidade, história, época, período,
calendário, outrora, passatempo, novidade, creme anti-rugas, disputa por
pênaltis, antepassado, descendente, dia, noite, nada, não existiria sabedoria,
eu sei disso.
Não tome como queixas minhas
palavras, por favor não tome.
Aqui vai apenas uma súplica.
Ah, se o Senhor fosse mais
indulgente, mais piedoso, mais pensativo, se fosse baiano, menos estressado,
mais manso, menos rigoroso, um bon-vivant, e se distraísse aí pelo caminho, e
se deixasse apreciar as paisagens, e sofresse um devaneio, e ficasse de
bobeira, esquecido das horas, divagando.
Escute aqui, seu Tempo, que
tal deixar passar o resto e parar quieto um pouco?
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